Se há uma cena que permanece enterrada sob as brumas da história musical, ela pulsa no coração da Bélgica, ecoando entre os becos úmidos de Bruxelas, as zonas industriais de Ghent e os clubes subterrâneos de Liège. A cena pós-punk belga dos anos 80 é um daqueles capítulos ocultos que revelam um universo sonoro sombrio, minimalista, tenso e profundamente inovador. Enquanto os olhos do mundo miravam Londres, Berlim e Manchester, a Bélgica cozinhava sua própria alquimia sonora: uma mistura de pós-punk, coldwave, EBM e industrial, marcada por um sentimento de alienação gélida e precisão eletrônica.
A peculiaridade da cena belga começa pela fusão precoce entre o pós-punk e a eletrônica industrial. A Bélgica dos anos 80 vivia um momento de efervescência cultural e desencanto político, o que se refletia na música. A influência de bandas britânicas como Joy Division, Wire e The Cure era evidente, mas os belgas adicionaram sua assinatura: batidas secas, linhas de baixo hipnóticas, sintetizadores frios e letras introspectivas em inglês, francês ou flamengo.
Um dos maiores expoentes foi o Siglo XX, de Genk. Sujo, direto e melancólico, o grupo entregava faixas que pareciam trilhas de um pesadelo urbano. Canções como The Art of War e Dreams of Pleasure são verdadeiros hinos do underground europeu, com atmosferas que rivalizam com qualquer clássico do pós-punk britânico.
Impossível falar da cena sem citar o The Names, que chegou a lançar pela Factory Benelux (subselo da lendária Factory Records). A produção de Martin Hannett no álbum Swimming (1982) convergem diretamente ao DNA de Manchester, mas com um lirismo próprio, contido, bem estilo europeu.
À;GRUMH... – Industrial ruidoso com performance quase ritualística.
Twilight Ritual – Autênticos mestres da coldwave, com sintetizadores minimalistas e vocais etéreos.
Neon Judgement – Outra peça-chave da EBM belga com DNA pós-punk: vocais desesperados e guitarras filtradas por delay.
Polyphonic Size – Brincava com synthpop e post-punk, com participação ocasional de Jean-Jacques Burnel do The Stranglers.
Red Zebra- Oriundos da cidade de Bruges, formado em 1978, emplacou o underground com seu hit "I Can't Live in a Living Room".
The Passengers- Banda pré- The Name, provenientes da cidade de Brussels, lançaram em 1978 o single ("Danger Zone"/"Hole in Your Mind").
Vita Noctis- Lançou duas fitas e um EP entre 1984 e 1986.Em 2012 reedição do material dos anos 80 em um 2 LP (lançado pela Dark Entries Records/Minimal Maximal Records).Vide (Anorexia Zine 3)
Isolation Ward- Pós-punk estupendo, ativos entre 1980-83 ( Vide o Blog Caverna Sonora). O single clássico (Lamina Christus), foi lançado em 1982.Em 1983 o single (Absent Heart), seguido dos álbuns (Point de départ- 84) e (Point final-84).
Compilações e fita cassete
Muito dessa produção sobreviveu graças a selos como Insane Music, Antler Records, Body Records e, claro, a já citada Factory Benelux. Compilações como From Behind the Bushes, B9 - Belgian Cold Wave 1981-1983, ou as fitas lançadas pela Insane Music, trazem joias escondidas e bandas como:
Soma Holiday, Sovjet War, O Veux, Bene Gesserit, Human Dance, Kloot Per W, A Blaze Colour, Secret Life etc.
Nenhuma travessia pela cena pós-punk belga dos anos 80 estaria completa sem parar no laboratório sonoro que foi a Crammed Discs. Fundado em 1980, em Bruxelas, pelo produtor Marc Hollander, o selo tornou-se um epicentro de experimentações pós-punk, avant-pop, minimalismo e world music, tudo misturado com um espírito cosmopolita e anti-rótulo que desafiava classificações.
Mais do que um selo, o Crammed era uma ideia em mutação constante — e isso se refletia em sua escalação. Embora muitas de suas bandas fossem difíceis de encaixar numa só gaveta, muitas delas vinham diretamente da veia mais artística e pós-punk da Bélgica.
Bandas pós-punk no selo Crammed Discs
Minimal Compact – Banda israelense baseada na Europa, mas intimamente ligada ao Crammed. Com seu pós-punk dançante e vocalizações carregadas de tensão, lançaram clássicos como Deadly Weapons (1984). Foram produzidos por Colin Newman (Wire), o que já diz muito. (Vide o Blog Caverna Sonora).
Aksak Maboul – Projeto do próprio Hollander, beirando o pós-punk progressivo com climas de jazz experimental e proto-electro. O disco Un Peu de l'Âme des Bandits (1980) é um Frankenstein sonoro de tirar o fôlego.
The Honeymoon Killers (Les Tueurs de la Lune de Miel) – Totalmente inclassificáveis, misturavam pós-punk com chanson, experimentalismo e um senso de humor sarcástico. O álbum Les Tueurs de la Lune de Miel (1981) é uma pérola dissonante.
Bel Canto – Embora mais etéreos e atmosféricos, têm um pé no pós-punk eletrônico europeu, com vocais flutuantes e synths gelados.
The Gruesome Twosome – Colisão de industrial, post-punk e delírio pop no fim dos anos 80.
O que separava o Crammed Discs de outros selos da época era sua visão artística plural, misturando culturas e estéticas com um espírito punk de reinvenção. Enquanto a maioria das bandas pós-punk buscava refinar ou radicalizar o modelo britânico, o Crammed estava interessado em desconstruí-lo completamente.
Se a cena belga pode ser vista como um espectro que vai do coldwave cru ao pós-punk sofisticado, o Crammed Discs habitava a zona mais imprevisível do mapa o cruzamento entre arte, ruído e groove.
Hoje, os discos lançados pelo selo são relíquias cultuadas por colecionadores e músicos experimentais do mundo todo. O que parecia excêntrico nos anos 80 soa profético agora.
O que tornava a cena belga especial era sua permeabilidade. Não havia uma fronteira rígida entre gêneros o post-punk se diluía no coldwave, no synthpunk, no minimal synth, na EBM e até no avant-garde. Era uma colagem sonora que refletia a própria identidade belga: multilíngue, ambígua, estranhamente bela.
Hoje, esse legado sobrevive como um eco. DJs redescobrem essas bandas em festas góticas, labels relançam os vinis raros, e novos ouvintes se encantam com as produções que, por anos, ficaram escondidas como relíquias de uma civilização soterrada.
A cena pós-punk belga dos anos 80 foi e ainda é um mapa de sombras para quem busca mais que o óbvio. Um convite a se perder entre ruínas industriais, baixos pulsantes e vozes que sussurram histórias de um futuro que nunca aconteceu.
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