A cena pós-punk australiana dos anos 1980 é uma das mais subestimadas e fascinantes do panorama underground global. Distante dos grandes centros da indústria musical, a Austrália desenvolveu uma sonoridade própria, abrasiva e intensa, marcada pela introspecção do pós-punk, mas também por uma urgência quase visceral, moldada pelo isolamento geográfico e pela efervescência cultural local. No Anorexia Zine, no qual buscamos iluminar os cantos mais sombrios e esquecidos da música alternativa, vale a pena mergulhar nesse subterrâneo repleto de ruídos, melancolia e invenção.
Nos anos 80, enquanto o pós-punk europeu tomava formas cada vez mais eletrônicas ou góticas, os australianos pareciam cavar mais fundo nas entranhas do punk, do psicodélico e do experimental. Em cidades como Melbourne, Sydney e Brisbane, surgiram selos independentes e espaços alternativos que fomentaram uma verdadeira explosão criativa. A influência de bandas como The Birthday Party, que migrou para Londres no início da década, é crucial para entender o impacto global desse som vindo do sul do planeta.
Bandas essenciais da cena pós-punk australiana:
The Birthday Party – Não há como falar da cena sem mencionar Nick Cave, Rowland S. Howard e companhia. Com seu som violento, teatral e perturbador, o grupo redefiniu os limites do pós-punk, misturando noise, blues e punk em uma experiência quase ritualística.
Laughing Clowns – Após sair do The Saints, Ed Kuepper fundou os Laughing Clowns, banda que levou o pós-punk a territórios jazzísticos e dissonantes. Seus arranjos caóticos e letras introspectivas são puro combustível para os devotos da música como forma de expressão extrema.
The Scientists – Saindo de Perth, os Scientists misturavam garage punk, feedback e um clima de decadência urbana que antecipava o grunge anos antes do termo ganhar fama. O disco Blood Red River (1983) é essencial.
X – Não confundir com a banda homônima de Los Angeles. A X australiana era crua, direta e furiosa, com um som minimalista e brutal. O álbum Aspirations (1979), embora tecnicamente pré-anos 80, é um marco fundador da cena.
The Triffids – Embora frequentemente associados ao rock alternativo, os Triffids mergulhavam na melancolia do pós-punk com paisagens sonoras desérticas e letras poéticas. O álbum Born Sandy Devotional (1986) é uma pérola sombria.
Crime & the City Solution – Banda liderada por Simon Bonney, que contava com ex-integrantes do Birthday Party. Criaram um som soturno e épico, com influência de gospel e do western, antecipando o clima cinematográfico que Nick Cave exploraria com os Bad Seeds.
These Immortal Souls – Outro projeto de Rowland S. Howard, após o fim do Birthday Party. Mais introspectivo, mas ainda envolto em guitarras cortantes e lirismo decadente.
The Moodists – Liderados por Dave Graney, os Moodists surgiram em Melbourne com um som denso, anguloso e raivoso. Misturavam garage rock, punk e um certo clima noir. Migraram para o Reino Unido e lançaram o excelente Thirsty’s Calling (1984).
The Go-Betweens – Embora frequentemente associados ao indie pop, os primeiros discos da banda trazem elementos do pós-punk, especialmente em álbuns como Before Hollywood (1983). Suas letras literárias e arranjos minimalistas flertam com a estética do estilo.
Whirlywirld – Projeto de Ollie Olsen (que depois faria parte do Max Q com Michael Hutchence), Whirlywirld explorava o lado mais eletrônico e avant-garde do pós-punk, com sintetizadores caóticos e batidas industriais.
No – Outra banda de Ollie Olsen, já em meados dos anos 80, mergulhava ainda mais fundo na estética industrial e na desilusão urbana. Um som áspero, mecânico, como se saísse diretamente de uma fábrica abandonada.
Grong Grong – Vindo de Adelaide, esse grupo era puro caos: uma mistura de punk, psicodelia e ruído. Praticamente uma versão australiana do The Stooges atravessada por pesadelos pós-punk. Sua energia crua e desregrada influenciaria o nascimento do que viria a ser chamado noise rock.
Box of Fish – Banda de Canberra com um som que combinava o clima soturno do pós-punk com um toque de surf rock desértico. Não tão conhecida, mas com faixas que merecem uma redescoberta.
Pel Mel – De Newcastle, com uma pegada mais minimalista e fria, influenciada por bandas como Joy Division e Wire. Misturavam elementos de synth-pop com uma estética pós-punk melancólica e distante.
Dead Can Dance – Ainda que tenham se firmado no cenário internacional com uma sonoridade mais etérea e neoclássica, o duo (Lisa Gerrard e Brendan Perry) começou em Melbourne e compartilhou palcos com nomes do pós-punk australiano antes de se mudar para Londres.
Tactics – De Canberra para Sydney, os Tactics traziam um som inteligente, com riffs cortantes, letras existencialistas e uma urgência que os colocava entre os mais inventivos da cena, embora sempre à margem do reconhecimento maior.
SPK – Um dos pioneiros do industrial no mundo. Inicialmente com uma abordagem mais ligada ao noise e à performance radical, depois flertaram com o synth-pop sombrio. O disco Leichenschrei (1982) é uma obra brutal e cultuada.
Plays With Marionettes – Projeto obscuro de Melbourne, com envolvimento de membros que depois tocariam com Nick Cave. Atmosfera tensa, sons quebrados e uma abordagem quase expressionista da música.
A cena pós-punk australiana não apenas forjou sonoridades únicas, mas também influenciou gerações futuras, tanto dentro quanto fora da ilha-continente. O isolamento forçou essas bandas a criarem seu próprio ecossistema, mas também lhes deu liberdade para experimentar sem pressões comerciais imediatas. Hoje, ouvimos ecos dessa produção nas bandas que continuam a explorar os limites entre o ruído, a emoção e a linguagem sonora.
Essas bandas juntas formam uma constelação dissonante e criativa que desafia classificações fáceis. O pós-punk australiano dos anos 80 não era apenas um espelho do que acontecia no Reino Unido — era um organismo vivo, reagindo ao seu próprio contexto social, geográfico e existencial.Um território fértil a ser explorado com ouvidos atentos e mente aberta.
Para os leitores do Caverna Sonora & Anorexia Zine revisitar essa cena é mais do que um exercício arqueológico: é um mergulho em um universo cuja música era uma forma de sobreviver ao tédio, ao calor, à alienação e ao deserto real ou simbólico.
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