terça-feira, 15 de abril de 2025

Nos porões de Lisboa, Porto, Braga e Coimbra: A Cena Pós-punk portuguesa anos 80.

 Falecido Alves Dos Reis, Primary, 1 of 3

Enquanto as reverberações do pós-punk ecoavam de Manchester a Berlim, algo sutil, porém visceral, tomava forma no subsolo português. Em meio à ressaca da Revolução dos Cravos e à lenta decomposição da ditadura, uma juventude inquieta começou a experimentar novas sonoridades, enterrar o velho e ensaiar o novo, entre guitarras cortantes, sintetizadores minimalistas e letras que falavam de desencanto, alienação e desejo.

Nos porões de Lisboa, Porto, Braga e Coimbra, uma cena ainda embrionária, mas repleta de energia, se moldava à sua maneira. Inspirados por Joy Division, The Cure, Bauhaus e Siouxsie & the Banshees, jovens músicos e bandas começaram a produzir sua própria leitura do pós-punk, muitas vezes misturado ao gótico, ao synthpop ou ao rock experimental.

Aqui Del-Rock: o som das trevas lusas

Talvez o nome mais icônico desse período seja Aqui d’el-Rock, banda de Almada que, apesar de ativa no final dos anos 70 e mais associada ao proto-punk português, pavimentou o caminho para a estética crua e urbana que seria explorada pelos filhos do pós-25 de Abril.

Logo viria a maré de grupos que abraçariam o espírito do DIY, lançando cassetes independentes, fazendo fanzines e ocupando espaços alternativos. Desta leva, Mão Morta se destaca como uma entidade singular: liderados por Adolfo Luxúria Canibal, surgiram em Braga em 1984, misturando poesia brutalista, experimentalismo sonoro e um pós-punk denso, quase ritualístico. Seu impacto reverbera até hoje.

Heróis da decadência: mais nomes, mais abismos

De Lisboa veio a potência minimalista e claustrofóbica do Cândida Branca Flor, uma banda de existência fugaz, mas que deixou marcas profundas na tape scene. Ainda na capital, o Cagliostro explorava atmosferas sombrias e densas, como se Lisboa tivesse sido tomada por névoa inglesa.

No Porto, Repórter Estrábico misturava o espírito pós-punk com ironia e crítica social, enquanto Bizarra Locomotiva, já no fim da década, levava tudo a um novo nível, fundindo o industrial com o gótico em um som brutalmente mecânico.

Outros nomes que deixaram suas digitais na cena incluem Tédio Boys, com sua atitude garageira e irreverente, Dazkarieh, que flertava com experimentalismos e tradições, Delfins, que mesmo pendendo para o pop carregava influências new wave no início da carreira, e Pop Dell’Arte, que esticava os limites entre arte sonora e performance, num diálogo direto com o dadaísmo e o espírito vanguardista.

 Bandas essenciais para explorar o pós-punk português :

Linha Geral: direto de Lisboa, com uma sonoridade econômica, fria e melancólica. Suas composições remetem ao minimalismo tenso do Young Marble Giants ou dos primeiros Cabaret Voltaire.

Angra do Budismo: nome estranho, som ainda mais. Misturavam ambientações industriais com vocais soturnos e batidas hipnóticas. Ecos de Coil, SPK, mas também algo bem lusitano no ar.

SPQR: um dos projetos mais radicais do período. Experimentalismo cru, quase sem estrutura, flertando com o ruído puro. Pós-industrial com alma de poema distorcido.

Alzheimer: camadas de synths lo-fi e guitarras minimalistas, trilhas sonoras para um Portugal distópico que nunca chegou, mas sempre pairou no ar.

K4 Quadrado Azul: misto de poesia concreta e pós-punk art-school, com uma vibe que remete ao que o A Certain Ratio fazia em Manchester.

Circa 2000: banda obscura de Coimbra que soube criar atmosferas góticas sem cair no clichê — músicas curtas, ríspidas e marcadas por linhas de baixo repetitivas.

Ik Mux: pura fragmentação sonora, como se Chrome e Suicide tivessem tomado vinho verde e gravado uma fita cassete numa cave do Porto.

Vox Populi (não confundir com a banda francesa): canções confessionais, carregadas de um romantismo dark, com influência clara da escola 4AD e de figuras como Anne Clark.

A Jovem Filarmónica de Ponte de Lima: nome bizarro, música ainda mais. Satíricos, niilistas, e completamente à margem uma cápsula de puro espírito do it yourself

Ecos da Cave: Originários de Santo Tirso, formaram-se em 1987 e participaram do 5º Concurso RRV em 1988, alcançando as semifinais. Seu álbum As Papoilas do Campo Estéril foi lançado em 1991, e a banda permaneceu ativa até 1995.

Bastardos do Cardeal: Parte da vibrante cena pós-punk portuguesa dos anos 80, contribuíram significativamente para o movimento underground da época.

Profilaxia: Outro nome relevante do cenário, conhecidos por suas composições que capturavam a essência do período.

Dead Dream Factory: Com uma sonoridade distinta, adicionaram profundidade à diversidade musical do pós-punk português.

Mori-Turi: Integrantes ativos da cena, contribuíram com performances e gravações que marcaram o período.

Menciono também a grosso modo : Croix Sainte, Falecido Alves dos Reis, Essa Entente, Igualdade Paralela, Margem Sul, Bramassaji, GNR, Culta da Ira, Lucretia Divina, Bando Branco, Ban, Restos mortais de Isabel etc.

Legado de sombras

Hoje, olhando pelo retrovisor, percebemos que o pós-punk português foi mais do que um reflexo tardio das cenas britânicas e alemãs. Foi uma tentativa autêntica de lidar com os escombros de um país em mutação, com a herança de décadas de repressão e a ansiedade de um futuro incerto. Há algo de profundamente luso nesse pós-punk  um lirismo sombrio, uma decadência poética, uma melancolia que não se rende.

No fundo, a cena pós-punk portuguesa dos anos 80 foi como um suspiro abafado entre as ruínas: breve, fragmentado, mas intensamente belo. E como tudo que habita as cavernas da memória, merece ser redescoberto fita por fita, ruído por ruído.

Enquanto o sol estalava sobre os azulejos de Lisboa, nos becos e porões ecoava outro tipo de calor,  ruído abafado das guitarras desafinadas, dos teclados baratos e das vozes filtradas por gravadores de fita. Não era só música: era um grito abafado, um chamado para os que se recusavam a vestir a nova roupa democrática do país sem antes cuspir em cima da velha.

Nesta singela homenagem estão bandas que, apesar de pouquíssima projeção na época, criaram obras que dialogam com o melhor do pós-punk, do minimal wave e do gótico europeu. Nomes que não estão nos livros de história, mas deveriam estar. Como disse outrora, o intento do Anorexia Zine, é trazer a lume a escuridão, fazendo uma analogia esdrúxula ao criminalista italiano Francesco Carnelutti (Sentar-se sobre o último degrau da escada, ao lado do acusado, quando todos o apontam).

 

 

 

 

 

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